
As professoras Vândiner Ribeiro e Ivana Teixeira nunca esquecerão o dia 2 de fevereiro de 2024. Naquela sexta-feira, há pouco mais de um ano, as duas foram presas preventivamente sob a acusação de cometerem maus-tratos, tortura e violência psicológica contra uma criança e uma adolescente que haviam adotado em 2021. As mães ficaram detidas durante pouco mais de três semanas, inicialmente no Centro de Detenção Provisória Feminino de Parnamirim, mas foram transferidas em seguida para a Penitenciária João Chaves, na zona Norte de Natal.
Depois de terem a vida revirada pelo avesso, enfrentarem meses de exposição midiática e serem submetidas a um verdadeiro assassinato de reputação, elas renasceram com a sentença de absolvição, proferida no dia 7 de novembro de 2024.Naturais de Minas Gerais, casadas há 12 anos, elas moram no Rio Grande do Norte desde 2016. Vândiner é professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A companheira dela, Ivana, é servidora da Universidade Estadual do RN (UERN). A prisão preventiva das duas foi decretada à época pela Vara da Infância e da Juventude da Comarca de Parnamirim, com o parecer favorável do Ministério Público.
Quando foram adotadas pelo casal, em outubro de 2021, as meninas tinham 9 e 12 anos de idade. Vândiner e Ivana foram buscá-las em Blumenau, Santa Catarina. As irmãs ficaram com as mães adotivas até o dia 26 de janeiro de 2024, quando foram retiradas do lar após o registro de um boletim de ocorrência, feito por uma cuidadora, por supostos maus-tratos contra a criança e a adolescente.
As mulheres prestaram depoimento, negaram as acusações, mas não adiantou. Depois de serem retiradas do convívio familiar, as meninas ficaram sob os cuidados do Estado, passando a viver na Casa do Adolescente, em Parnamirim. Uma semana depois, as mães adotivas foram presas.

Os processos
Vândiner e Ivana enfrentaram dois processos gerados após a denúncia da cuidadora e a prisão preventiva, um criminal e outro cível. Esse último poderia levar à destituição do poder familiar em relação às filhas adotivas, que foram para um abrigo após serem retiradas do convívio com as mães.
Após serem absolvidas de todas as acusações, elas foram consultadas sobre a possibilidade do retorno das meninas para casa, mas explicaram que seria impossível devido à situação vivida e ao fato de que foram as mentiras das próprias filhas que as levaram à prisão. A convivência, diante disso, se tornou inviável.Vândiner relatou que, desde o início, ficou evidente que as meninas não queriam ser adotadas. Ela e sua companheira, no entanto, acreditavam que o amor delas pelas filhas terminaria conquistando as duas, o que se mostrou uma esperança frustrada.
A partir da resposta do casal sobre a impossibilidade do retorno das meninas à casa delas, houve a destituição do poder familiar, mas, como a adoção é irrevogável, as duas continuam sendo legalmente filhas de Vândiner e Ivana.
A partir desse momento, as meninas ficaram sob a tutela do Estado. Inicialmente, as duas permaneceram em Parnamirim, mas em janeiro desse ano, não se sabe como, fugiram para Santa Catarina.“Não tivemos notícia do que aconteceu, como elas conseguiram chegar lá, mas elas estão na casa do pai biológico, que perdeu o poder familiar quando elas entraram para adoção”, contaram as mães adotivas.
O fim do pesadelo
A absolvição representou, além do alívio citado pelas mães, a confirmação do fim de um pesadelo. Vândiner contou que, no dia do julgamento, a juíza do caso disse que poderia proferir a sentença apenas oral, mas fez questão de fazer por escrito porque as duas, acusadas injustamente, mereciam que a reparação ficasse registrada.
A juíza refutou a acusação do crime de tortura, enfatizando na sentença que “verificou-se, no curso do processo, que não restou evidenciado nos autos, de forma alguma, os requisitos necessários à configuração da conduta delitiva, pois, ao contrário, todo o acervo probatório colacionado demonstra, com muita clareza e segurança, o cuidado, o zelo e a atenção dispensados pelas acusadas às filhas”.
Em sua decisão, a juíza também atestou que Vândiner e Ivana fizeram “diversas tentativas de fortalecimento dos vínculos entre mães e filhas durante todo o período de convivência”, além de enfatizar que, pelo que se apurou nos autos, a adoção era “um dos projetos de vida das denunciadas”.
A juíza registrou, ainda, em outro trecho da sentença, que as “provas extensamente produzidas durante a instrução deste processo” demonstraram de forma “clara, coerente e em harmonia com a prova testemunhal e documental” que “as acusadas cumpriram, devidamente, os deveres de sustento, guarda e educação das filhas, bem como que durante todo o tempo de convívio proporcionaram um ambiente familiar de amor, diálogo, compreensão, acolhimento, respeito e valorização”.
Na sentença, a juíza também pontua que as mães fizeram tudo isso “mesmo diante dos desafios diários relativos às questões de dificuldade no cumprimento de regras e atos de indisciplina” por parte das duas meninas.
A sentença também destaca que as testemunhas que participavam do ambiente familiar e escolar, além de vários moradores do condomínio, “nunca observaram qualquer indício de que a criança e a adolescente eram maltratadas ou de que sofressem restrição alimentar, de convívio social ou possíveis violações de direitos, inclusive no ambiente escolar”.
A magistrada considerou, ainda, que as mães tiveram “suas vidas expostas” e foram “publicamente julgadas e previamente condenadas em decorrência de ações imaturas e inconsequentes de uma criança (à época) e uma adolescente, que buscavam, ao fim e ao cabo, voltarem a viver à margem das regras inerentes a uma convivência familiar, como, infelizmente, estiveram na maior parte de suas vidas, vítimas que também foram, ao que tudo indica, do padrão comportamental de sua família de origem e em relação à qual aparentam manter lealdade”.
Injustiça e indignação
Quando lembram de tudo o que vivenciaram, desde a acusação, passando pela prisão e a esperada absolvição, Vândiner e Ivana se sentem aliviadas com o desfecho desse processo que foi tão doloroso para elas, mas indignação diante da injustiça que sofreram.“A gente não precisava passar pelo que a gente passou se esse processo tivesse sido conduzido de outra forma”, disse, emocionada, Vândiner, em entrevista exclusiva à Agência Saiba Mais.Para ela, apesar do alívio da absolvição, a sensação ainda é que a justiça não foi nem nunca será feita na sua integralidade.
O sentimento de injustiça é partilhado por Ivana, para quem a absolvição significa apenas uma “justiça legal”, mas o processo em si, principalmente o inquérito policial, não foi conduzido como deveria.“Eu não acho que o inquérito foi feito da maneira que devia ser, com cuidado, atenção aos detalhes, oitiva de pessoas de um lado e do outro e apuração de todas as provas. As informações foram vazadas com muita rapidez. As pessoas estavam muito ávidas para nos condenar mesmo e a coisa foi muito corrida”, ponderou.
Ivana afirmou que o caso deveria ter sido tratado com sigilo de Justiça desde o início, como determina a lei, mas, em vez disso, houve vazamento de informações falsas para a imprensa, que em sua grande maioria cobriu o caso com sensacionalismo.“Vazaram que as meninas eram escravizadas. Isso nem foi tratado no processo. Então, como essa informação chegou à imprensa? Quem vazou? O processo é sigiloso, mas nós tivemos fotos no presídio expostas na mídia. Tivemos até que repetir a entrada na delegacia porque a filmagem não tinha ficado boa. Foi ridículo”, disse Ivana, em tom de indignação.
Delegada não ouviu testemunhas de defesa
Elas lembraram que a delegada Ana Gadelha, titular da Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente de Parnamirim, deu entrevista à época chorando, dizendo que as meninas passavam fome, mas que, finalmente, estavam livres. “Ela não tinha elementos para afirmar isso”, disse Vândiner.
Na época do caso, a delegada afirmou, com base no depoimento de 19 testemunhas de acusação, que as supostas agressões contra as duas meninas haviam começado a ocorrer um ano após a adoção.De acordo, ainda, com a delegada, as duas irmãs contaram que sofriam agressões físicas e psicológicas quase diariamente, além de sofrerem ameaças para não contarem o que estava acontecendo.
“A violência psicológica também acontecia no âmbito da obrigatoriedade de se realizar todos os serviços domésticos da casa e serviços de jardinagem. Não cabe a uma criança ficar preocupada com as coletas de lixo, mas elas eram responsáveis por coletar o lixo da residência”, declarou, à época, a delegada.
As mães adotivas disseram que a delegada só ouviu pessoas que não as conheciam, não eram do convívio pessoal nem profissional delas. Elas não sabem dizer quem indicou essas testemunhas, mas dizem que certamente “saiu do condomínio” onde moram em Parnamirim.
Acusações baseadas em fofocas
“As acusações que sofremos e que provocaram a nossa prisão foram baseadas em fofocas. As provas contundentes da delegada eram baseadas em fofocas. As testemunhas de acusação não conheciam as meninas nem nos conheciam, só disseram coisas que ouviram dizer por outras pessoas”, disse Ivana.
Uma das testemunhas de acusação, a professora particular dos filhos de uma vizinha de Ivana e Vândiner, disse à polícia que ouviu as duas meninas chorarem e gritarem, mas o depoimento deixou várias lacunas que indicavam serem falsas as afirmações.
A mulher disse, por exemplo, que as duas meninas faltavam muito à escola porque apanhavam e não podiam ir às aulas, mas isso foi desmentido pela diretora do colégio particular onde as duas estudavam, bem como pelo histórico escolar anexado aos autos, que atestou uma frequência escolar acima de 99%.
A diretora atestou que as duas eram extremamente bem cuidadas e que não faltavam às aulas. As mães relataram que elas chegaram com muitas dificuldades em todas as áreas de conhecimento, em especial de leitura e escrita, mas, com o tempo, suas notas estavam sempre entre as maiores ou dentro da média.Para chegar a esse resultado, segundo as mães das meninas, não foi do dia para a noite. Elas tinham acompanhamento diário, tanto para fazer o “dever de casa” quanto na escola, conforme consta em diversas conversas com a direção da escola via WhatsApp, que foram acostadas aos autos.
As mentiras não pararam por aí. Houve quem dissesse, segundo Vândiner, que as meninas iam de moletom para a escola todos os dias para esconder as marcas das supostas agressões.
A diretora, mais uma vez, desmentiu afirmando que a camisa da farda da escola era de manga curta. As mães confirmaram que, nas aulas de educação física, bem como em outras atividades físicas que elas participavam na área do condomínio, frequentemente as meninas usavam roupas como top, camiseta, short e biquíni.